Por Licurgo Nunes Neto
A sombra do serrote avançava ligeira e já envolvia todo o terreiro. Mais alguns minutos e se perderia no infinito, avisando à brisa da boquinha da noite que pode começar a soprar para baixar o fogo do dia. O vaqueiro já tinha voltado da manga com a vacaria e chiqueirado os bezerros, garantindo o leite da manhã seguinte. Galinhas e patos já procuravam seus lugares altos no poleiro improvisado na cajarana, com a algazarra típica de quem foge da morte rasteira por nome de cobra e raposa.
Lá longe, fundindo-se com o dourado do horizonte, surge uma forma tremeluzente de contornos incertos, mas de fácil identificação para o olho experimentado do sertanejo: é um cavaleiro. Uma figura volumosa balança de um lado para o outro por arte da pequena gangorra nas ancas do animal.
Ombros largos e preguiçosamente caídos, uma mão na lua da sela, a outra se esforçando para vencer a pança e alcançar as rédeas. Os pés teimam em escapar dos estribos, preferindo o balançar aleatório no vazio. Altivez e harmonia, definitivamente, não descrevem o paladino. Áurea aperta os olhos e se pergunta: “quem é meu Deus, a esta hora?”. Mas antes que aquela silhueta encontre um par em sua memória, a mulher é interrompida pelo lamento do marido, que vem com um esgar dos que sofrem de verdade: “valha-me Deus... acabou-se a comida de minha casa! Hildebrando tá chegando.”
Suassuna sabia que não lidava com um amador. Desobrigado pelos recursos de família da virtude do trabalho, Hildebrando aquietava sua alma nos prazeres simples da vida, em especial no melhor deles, conforme seu julgamento: comia com gosto e sem limites. Era um glutão. Com certo enfaro, contava as horas entre uma refeição e outra tendo por passatempo a administração da fazenda do melhor local possível: seu trono balançante entre os tornos mais fixes do alpendre.
Foi de lá que uma vez se viu confrontado com uma praga rogada por uma cigana, desgostosa que estava com a resposta ao seu pedido de esmola: “tem não!”. A andarilha, mitologicamente afeita ao sobrenatural, vaticinou: “pois uma cascavéia vai picar ocê no caminho do roçado!”. Hildebrando, cuja pele alva jamais esteve ameaçada pelos rigores do sol sertanejo, que só conhecia o roçado por ouvir dizer, pega numa das varandas da rede e num movimento sincronizado de braço e corpo envolve-se no linho, dizendo precavido: “só se ela cair do telhado!”.
Áurea, feliz em ver o irmão, apressa-se nas boas-vindas: “vamos apear, Brando...”. O irmão agradece a gentileza: “já almoçaram? Viagem longa”. A observação provoca um leve tremor em Suassuna, como o prenúncio de uma grande desgraça. “Você janta com a gente e pernoita por aqui”, resolve a irmã. Era o que o viajante queria ouvir.
A visita do irmão era uma das poucas alegrias na vida de Áurea. O casamento tinha-lhe retirado o convívio da família e ao mesmo tempo lhe apresentado a uma nova sorte de valores, ou à falta deles: até então não sabia o que era privação, mesquinharia e pequenez d’alma. O enlace foi apenas o início de suas agruras. Em suas últimas conversas com o sobrinho que lhe visitava semanalmente em seu exílio final, Mossoró, dizia-lhe com uma clarividência incomum para quem já perdera a luz dos olhos: “Júnior, na vida você precisa se precaver dos ‘cinco esses’”. E completava: “Saudade, Solidão, Suassuna, Saldanha e Satanás!”. Vitimada pelo encontro forçado com os primeiros quatro algozes, argumentava aos céus que não merecia a companhia do último. No que concordam os Diógenes que aqui ficaram.
Na meia hora de prosa no alpendre, o visitante atém-se sempre ao essencial, de modo a não prolongar sua espera. A conversa é boa, mas saco seco não se põe falante. Áurea, encarregando-se pessoalmente das orientações à criadagem, cuida para que o jantar seja farto, digno da voracidade do conviva. Suassuna, de hábitos frugais à mesa, parte pelo corpo franzino, parte pela excessiva previdência material (confundida pelos mais azedos com avareza pura e simples), testemunha a derrubada de um cuscuz, duas canecas de leite gordo, oito ovos de capoeira, uma banda do queijo coalho que ainda curava no cincho, uma mão-de-vaca que escapara do almoço, três tapiocas com nata e uma caçarola de coalhada com um pacote de bolachas sete-capas esmigalhadas com as mãos. Tudo isto intercalado por “homem, você morre”, “é um animal” e “ô, jumento”, ditos com desesperança e pesar pelo anfitrião. Uma terrina de doce de leite ao final, um arroto ritualístico de satisfação e todos se recolhem. O casal em seu quarto, Hildebrando no alpendre.
Áurea termina suas orações, deita-se de lado e dorme. Suassuna tem por hábito à rede envolver-se na contabilidade da fazenda e nas maquinações de vida, mas naquela noite o sono tem outro motivo para demorar a chegar: um ronco gutural emerge do alpendre e se espalha pela casa, como só em noites de trovoada se vê por aquelas bandas de Patu.
Decidido a dormir, Suassuna passa a usar o ronco de Hildebrando para dar ritmo ao balanço da rede, que é empurrada por um leve empurrão de seu pé contra a parede. Mas aquela não era uma noite de Morfeu. O ronco desaparece gradualmente e há agora em seu lugar um gemido. De início bem baixinho, quase entre os dentes, cresce em intensidade e dor. Logo emerge daquele alpendre uma sinfonia de carpideira: “aaaêê... uhhmmm... aaaaai...”. O prantear pungente comove Suassuna: “Áurea, teu irmão tá morrendo”.
Áurea acorda, mas não entende o que acontece. O marido explica sem demora: “um homem sem estilo destes tem de morrer empanzinado. Vai lá e acode o desgraçado com um chá de boldo”. O alpendre estremece: “Uhhmm... aêmedeus...”.
A mulher abre a porta e fecha o robe até em cima, cuidando do sereno da noite. Vai até a rede do irmão e enquanto caminha pelo tijolo batido o marido espera do outro lado da janela com um discreto sorriso de satisfação nos lábios, certo de que presencia uma rara cena de punição dos pecadores. Áurea chega à rede do irmão. Àquela distância, os gemidos são lancinantes e transformam seu ceticismo em preocupação sincera pelo estado de Hildebrando. Ela balança de leve o punho da rede e pergunta: “Brando?”. O homem, que antes se contorcia de um lado para o outro, espicha-se para trás buscando aquela voz caridosa e, como se estivesse diante de uma aparição da Virgem, diz: “Ááááurea! Grazadeus. Ô Áurea, pelamordedeus, vá olhar se aquele munguzá já dá um caldo! EU TÔ MORRENDO DE FOME!”
...
Do outro lado da janela, o sorriso se desfaz: “é um animal!”.
Excelente texto, Nunes.
ResponderExcluirUma peça literária de grande qualidade.
Ficamos aqui desejosos de ler mais deste universo sertanejo.
Abraço,
TL
Adorei o texto!
ResponderExcluirGostei muito. Aguardo outros.
ResponderExcluirEduardo
Gostei desse.Mande mais.
ResponderExcluirEduardo (Bubbajones)
cada qual com sua história. Benzadeus Brando!... Salve a prosa do galego!
ResponderExcluirAndré Siqueira
Galego,
ResponderExcluirExcelente texto! Me remeteu aos causos do Rolando Boldrin nas revistas da TAM...
Enfim, esperamos mais!
Abraços,
Albany
Lico no bom e velho estilo Graciliano Ramos.
ResponderExcluirLiberdade temática,rigor estilístico e a boa e irreverente surpresa.
Sugestão para um bom livro: Vidas Molhadas em antítese ao bom romance nordestino que moldou a década infarta de 30. :)
Bote pra frente.
Parabéns
André Macedo
Sou neto dele. Conhecia o causo da Cigana. Lembreime de meu pai, José Diógenes(Zé do Inharé)quando nas nossas conversas de fim de tarde,debaixo da latada de ramo de oiticica,ele exclamava-FOI NO TEMPO DA FINADA FARTURA!!!
ResponderExcluirExcelente. Uma peça Literária.
napoleao_diogenes@hotmail.com